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22 abril, 2006

Finalista Desnorteada III


O instante fulminante parecia durar horas e horas no gabinete do executivo, segurando o saco de gelo na minha face golpeada onde transparecia uma coloração púrpura e pude sentir periodicamente pontadas de dor.
Tal era a perseverança de não perder as minhas estribeiras perante a sua presença que me incomodava, só desejava dar-lhe a maior sova da sua vida!
Como isso não aconteceu, decidi manter-me calma e contar toda a veracidade do sucedido e a única resposta que obtivemos da responsável:

- Bom, isso compete a vocês os dois pedirem as desculpas uns ao outro pelos actos referidos e espero que resolvem a vossa incompatibilidade antes que vos aconteça algo. Ainda mais, quero-vos ver sair daqui de mãos dadas.

Incrédula perante o comentário, que queria ela dizer? Incompatibilidade, mas que palavra tão forasteira! Nesse dia criei uma gazeta de vocabulários desconhecidos, a sonoridade labial na locução insondada era deveras mirabolante que me seduzia uma musicalidade singular.
Entretanto, estivemos ambos na defensiva de dar o primeiro passo. Só via o braço dele a erguer-se e o seu olhar mostrava um arrependimento patente, fiquei receosa com a súbita mudança de comportamento onde manifestei a total desconfiança.
Será que estava a ser sincero? Ou queria sair de lá o mais rapidamente possível para ter com os colegas? Resolvi arriscar, aceitei as desculpas tanto como ele a mim e saímos pela porta fora de mãos dadas, contrariados.
Desde então não houve mais problemas e chatices, passando um tempo a campainha tinha tocado, só que não ouvia e fui logo abordada por uma amiga. Entramos ambas para a sala, onde alguém queria falar connosco e apareceu a educadora I. vestida de fato de banho com calções amarelados.
Murmúrios exaltados e ruidosos, cadeiras arrastadas perante o espanto imprevisto que acabaram por soltar gritos eufóricos, claro eu feita de parva! Dialoguei silenciosamente:

- O quê? Vamos para a praia? Mas então não trouxe o meu fato de banho!
- Nua, é que não vou!

A educadora I dirigiu em minha direcção e bastou-lhe dizer uma simples frase como se tivesse lido os meus pensamentos irrequietos:

- Memorex vai buscar a tua mala que está lá o teu fato de banho, mas não demores para depois pores no teu pescoço, a etiqueta do colégio.

Todos os colegas finalistas do quarto ano, inclusive eu começamos a cantarolar bem alto dentro da camioneta desocupada a caminho para a praia de Fonte da Telha:

1, 2, 3, 4, 5, 6, 7, VIVA A NOSSA CAMIONETA! LÀ, LÀ, LÀ! VIVA A NOSSA CAMIONETA!

(… tem continuidade …)

03 abril, 2006

Desafiar a Autoridade


Procurava um hino de superioridade diante dos mais velhos ou seja, testava a agudeza de domar o risco perante a postura inexperiente. O feitio intransigente incorporado na cumplicidade muda, o temperamento sereno por vezes traiçoeiro na metamorfose episódica.
Os meus progenitores ensinaram-me deste muito cedo ser consciente pelos actos, houve alturas que argumentava a acepção da responsabilidade. Então o que era ser inconsciente? Qual era o flanco inverso da irresponsabilidade?
Restava-me desmascarar a bruma vedada dentro de um grande cofre sólido, cercado em sistemas de alta segurança, a ambição indiscreta vagueava pausadamente no aperto âmago de ser apanhada em flagrante. Nada disso se verificou, os alarmes não agitaram e tudo permanecia calmo, silente e cheio de humidade numa escuridão que os brilhos avermelhados acediam e apagavam automaticamente como os de ambulância.
Tudo tornara complicado em desvendar o código, letras de R-I-P-A-S-O-B-N-L-P-E-D misturadas na horizontalidade e verticalidade. Trata-se de um jogo mental, esforçadamente construo cálculos e fez luz! Giro o botão cuidadosamente começando por I-R-R-E-S-P-O-N-S-A-B-I-L-I-D-A-D-E, e num ápice a porta de aço abre.
Atónita e céptica ao avistar o lugar, permanece um dicionário ilustrado acima do planalto e desfechei as folhas, procurando a caligrafia I. Achei-o ali mesmo, na página 308 – «irresponsabilidade»: inconsciente – ignorância – irrespeitável – superioridade – domínio – desafiar a autoridade.
As duas últimas palavras «desafiar a autoridade» seduzira-me no piscar e fechar os olhos, querendo apalpar o transe do risco, a vacilação de entrar ou não dentro do supermercado era imparcial no medo assombroso que sentira. Mal invadi o estabelecimento com toda a naturalidade de que não estava a acontecer nada de suspeito, senão meramente um exame ás minhas capacidades infiltradas no mundo adulto.
Avançava pelas divisões separadas, via prateleiras de chocolates apetitosos, bolachas saborosas, latas de salsichas e cogumelos, pacotes de batatas fritas e uma base gigantesca de guloseimas.
Já escolhera o alvo, olhava para todos os cantos estudando as probabilidades de não ser capturada pelo dono da loja mas ele estava no fundo da esquina a olhar para mim, esboçando um sorriso forçado.
Tive retomar outra alternativa, recomeçar do zero de modo divergente para que não desconfiasse do meu plano. Tudo alterara com o aparecimento de um amigo, aquele que andara na creche também ele sendo surdo, era o P.
Ainda mais empolgada, falei gestualmente dizendo-lhe para entreter o dono na desculpa de pedir algo e fizesse não compreender o que ele dizia, dando-me tempo para o furto iminente. O P estranhou-se e com a sua expressão estupefacta negou-me, supliquei-lhe na promessa de lhe dar a minha quota-parte, após a reflexão aceitou a proposta.
Passando um segundo, tentei conter as gargalhadas ao assistir a cena, a dificuldade hilariante do dono era de tal modo desesperante, apavorado pela incompreensão gestual e o P levantava a voz, fingindo estar revoltado pelo seu desentendimento. Aproveitei o momento fulcral da roubadela, enchi-me de coragem destapando as caixas das gomas e meti-as apressadamente dentro dos meus bolsos, quase cheios!

Dirigi-me ao balcão, ajudando o dono na tamanha atrapalhada
- Posso ajudá-lo?
- Achas que és capaz de me ajudar?
- Ajudar? Depende da ajuda…
- Bom, é que não consigo compreender este rapaz. O que ele quer?
- Ele pediu um sumo de laranja.
- Ah, puxa tanta confusão por um sumo de laranja!
Saímos de lá complentamente eufóricos! Corremos em direcção ao parque e por fim dei-lhe a outra metade... inesquecível!
P.S-» a história intitulada de "Finalista Desnorteada III" será postada depois das férias de Páscoa, desejo-vos uma Boa Páscoa cheio de chocolates e uma grande concentração nas estradas portuguesas!